Chegou a hora de empreender fora de casa!

Não é novidade que a mulher negra sempre geriu, organizou e sustentou emocional e materialmente muitos lares. Agora, além de cuidar da família, ela ganha espaço no mundo empresarial.

Nos últimos dez anos, as pesquisas apontam o crescimento da população feminina, e como consequência, está acontecendo uma mudança no cenário do empreendedorismo brasileiro. De acordo com o SEBRAE, o número de negros empreendedores cresceu 28,5%. De acordo com a Pnad – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, a participação das mulheres no mercado de trabalho passou de 41,7% (2001) para 42,2% (2011); o número de mulheres à frente de um negócio passou de 28,7%, em 2001, para 30,8% em 2011.

Embora o crescimento apresente um novo aspecto na produção e participação do negro na economia brasileira, pesquisas indicam que mulheres continuam tendo salários menores do que os homens, e quando o recorte se soma ao parâmetro racial, as diferenças se tornam ainda maiores. “As mulheres têm avançado na conquista de seu espaço no mercado de trabalho ao longo dos últimos anos, têm conquistado mais postos de destaque e cargos de liderança, tanto em empresas como nos governos. Entretanto, ainda temos desafios. Apesar de sermos a maioria entre as pessoas em idade ativa – 52,3% – ainda somos minoria entre as pessoas ocupadas – 42,4% (PNAD 2012). Além das dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, quando ocupadas, as mulheres recebem menos do que os homens”, aponta Tatau Godinho, da Secretaria de Políticas do Trabalho e Autonomia Econômica das Mulheres da Presidência da República.

Além do fator de gênero, o fator racial aumenta os índices da desigualdade entre homens e mulheres negras. “O racismo é um importante indicador de análise da dinâmica das relações no mundo do trabalho, considerando que a situação de desigualdade das mulheres negras se manifesta de formas variadas: ocupação dos postos mais baixos da escala salarial, com maior precarização; remuneração desigual em ocupações de igual categoria; discriminação na admissão, promoção e qualificação. Somado a isso, são obrigadas a conciliar o emprego com as responsabilidades familiares, enfrentando assim uma dupla ou tripla jornada de trabalho.

Apesar de as mulheres terem sido incorporadas às novas atividades produtivas, as relações de poder entre mulheres e homens e entre mulheres brancas e mulheres negras nestes espaços não têm se alterado significativamente ao longo dos anos. Segundo o IBGE, entre os donos de negócios existentes no Brasil, por exemplo, 31% são mulheres e 69% são homens. A participação das mulheres é ligeiramente maior na categoria outros (principalmente amarelos), com uma proporção que chega a 34% do total, e cai para 32% na categoria dos brancos e 29% entre os pretos e pardos. A participação dos homens é de 71% nos pretos e pardos, 68% nos brancos e 66% nos outros (e 69% na média geral)”, explica Mônica Alves de Oliveira, diretora de programas da Secretaria de Ações Afirmativas da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.

Outro fator que aponta as desigualdades se dá no território brasileiro: “52% dos novos empreendedores – aqueles com menos de três anos e meio de atividade – são mulheres. A força empreendedora feminina é a maioria em quatro das cinco regiões brasileiras. Apenas no Nordeste elas ainda não ultrapassaram os homens, mas estão quase lá, com aproximadamente 49% de participação entre os novos empresários. As mulheres também são mais escolarizadas e investem mais em qualificação, buscam acesso às informações, não permitem amadorismo”, aponta Luiz Barreto, presidente do SEBRAE.

Se por um lado a tendência histórica são as mulheres negras ocupando os serviços domésticos, por outro, o aumento de experiências empreendedoras entre a comunidade negra feminina muda o curso dos números, que reforçam aspectos de uma sociedade onde a democracia racial e de gênero e as políticas de ações afirmativas sejam incipientes ao processo de equidade social; o aumento de mulheres no mercado empreendedor é notável nos últimos anos, apresentando aspectos econômicos de concorrência e criação de uma segmentação de público notável. Do mercado da moda à criação de produtos voltados ao segmento afrodescendente, as mulheres negras estão se fazendo notar. “Analisando a categoria das mulheres que trabalham por conta própria, vemos, mais uma vez, que elas estão mais concentradas em áreas semelhantes àquelas que empregam mais mulheres no mercado de trabalho: 32,6% das mulheres atuam no setor de serviços e 29,8% no comércio. O setor de atividade com menos de presença de mulheres é o da construção. Apenas 0,2% das mulheres que trabalham por conta própria atuam nesse ramo”, explica Godinho.

Um exemplo notável entre as empreendedoras paulistanas, Adriana Barbosa há onze anos realiza o primeiro e único evento que reúne empreendedores negros, a Feira Preta. “A mulher negra, ao longo dos últimos anos, vem construindo suas próprias estratégias para superar os desafios e obstáculos do dia a dia, e olha que não são poucos. Não é à toa que boa parte do perfil empreendedor da Feira Preta são mulheres, não só da Feira como o perfil dos afro-empreendedores que tem aparecido nas pesquisas que fazemos sobre o tema. O perfil empreendedor da mulher negra não é de agora, há muito tempo ela comanda a maioria dos lares brasileiros, é ela que traz o dinheiro pra casa e cuida da parte orçamentária da família. E traz o dinheiro pra casa com pequenos negócios, seja vendendo quentinhas, fazendo cabelo, ou criando peças de artesanato. Muitas delas estão na informalidade, mas já empreendendo há muitos anos”, observa Adriana.

Políticas, formação e reconhecimento da afro-empreendedora 

Exemplo entre as mulheres empreendedoras negras de sucesso, Zica Simões foi indicada na lista da Forbes como uma das brasileiras mais influentes. “É maravilhoso! Quando a gente começa um novo negócio nunca sabe ao certo onde pode chegar. Estar na Forbes é algo que eu nunca tinha imaginado. De repente, você está no meio daquelas pessoas grandiosas, formadores de opinião em diferentes setores do mercado. O preconceito ainda existe, mas momentos como esse, certamente, trazem esperança para as mulheres e mostram que é possível alcançar seus sonhos”, disse Zica Simões.

Contudo, o caso de Zica ainda é uma exceção e inspiração entre as mulheres negras empreendedoras. As histórias das microempreendedoras têm em seu começo um ponto em comum: as dificuldades de investimentos e a falta de conhecimento. “O início é sempre caótico, por falta de instrução e conhecimento, saímos fazendo tudo e de qualquer jeito, daí quebramos a cara aqui e ali, e vamos ajudando umas as outras, com informações, relatos de experiências ruins, contatos, a coisa vai acontecendo. Mas só percebemos o quanto não sabemos quando estamos a alguns passos a frente e olhamos pra trás. Aí conseguimos ver o conhecimento adquirido em áreas que não fazem parte da história do negro no Brasil, por exemplo administrar. Somos treinados a ter um patrão, a seguir ordens e obedecer. Quando nos deparamos com uma situação que necessita deste tipo de empoderamento, quase sempre não conseguimos resolver”, relata Marçal.

“As políticas públicas necessitam considerar que os empreendedores negros, pela própria situação de racismo, muitas vezes não estão devidamente institucionalizados, ou não preenchem as exigências mínimas para acessar benefícios e recursos oriundos de políticas públicas específicas para este setor. Neste sentido, os critérios precisam mudar para comportar estes novos empreendedores. E o processo de divulgação dos benefícios dos editais tem que levar em conta as especificidades deste empreendedor”, reitera Cida Bento, do CEERT.

No momento de caos, as empreendedoras buscam cursos de formação e com o tempo vem o aprimoramento técnico na área administrativa, gerando ao segmento a necessidade de criar programas voltados ao afroempreendedorismo. “O empreendedor precisa estar bem capacitado para enfrentar as dificuldades e saber quais os melhores caminhos para ter uma equipe qualificada. Em sintonia com esse cenário, o SEBRAE vem investindo em ações de capacitação e desenvolvimento de atitudes empreendedoras com a população negra. Em parceria com o Instituto Adolpho Bauer e o Coletivo de Empresários e Empreendedores Negros de São Paulo, lançamos o projeto Brasil Afroempreendedor ano passado. O objetivo é capacitar donos de pequenos negócios em comunidades negras remanescentes de quilombos em 12 estados brasileiros. Além dessa parceria voltada especificamente para os afroempreendedores, oferecemos cursos e palestras, consultorias e informações de gestão para quem já empreende ou para quem sonha em montar a sua empresa”, destaca Luiz Barreto.

No âmbito das políticas públicas, a diretora de programa de ações afirmativas da SEPPIR, Mônica Alves, destaca que “a SEPPIR tem buscado atuar em dois eixos – ação afirmativa nas empresas, através de nossa participação no Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça, em parceria com a Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) e no incentivo às ações afirmativas nas políticas e programas de empreendedorismo”. O

Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça, coordenado pela Secretaria de Políticas para Mulher, existe desde 2005, e tem como objetivo promover a igualdade de oportunidades e de tratamento entre homens e mulheres e entre negros e não-negros nas organizações públicas e privadas e instituições por meio do desenvolvimento de novas concepções na gestão de pessoas e na cultura organizacional. As empresas que aderem ao Programa se comprometem a elaborar e desenvolver um plano de ação com atividades para diminuir as desigualdades de gênero e raça em sua instituição. O Programa está atualmente na sua 5ª edição e, somente na última, já beneficiou 900 mil trabalhadores e trabalhadoras, direta e indiretamente”, completa Tatau Godinho, da SPM.

“Por outro lado grandes empresas, bancos e o próprio estado brasileiro necessitam colocar o dado cor em seus cadastros de fornecedores, de modo a perceber que negros não estão inclusos neste cadastro e, portanto, não tem a chance de prestar serviços para grandes organizações”, destaca Cida Bento.

Embora algumas ações estejam sendo feitas no âmbito privado e federal para capacitação e geração de oportunidade para o afroempreendedor, vale destacar que a ausência de dados que especifiquem e apontem com exatidão o atual quadro do afroempreendedorismo dificulta que se compreenda a real influência do segmento no mercado e na economia.

“Eu sinto falta de uma pesquisa mais consolidada para mapear de fato a realidade empreendedora entre os negros no Brasil. Temos o crescimento, mas ele ainda é invisível pela falta de pesquisas e publicações no tema. Apenas nos últimos 3 a 5 anos esse tema está mais visível para algumas agências do governo, mas é invisível para a iniciativa privada. Precisamos saber qual o percentual de negros que estão empreendendo hoje, quais os segmentos e qual a panorama desse mercado. Esse diagnóstico fará toda a diferença na luta desigual entre brancos negros que empreendem. O que posso afirmar, por experiência própria é que a desigualdade existe e está presente todos os dias. Seja pela falta de financiamento, seja pela falta do capital de giro, seja pela falta de informações que os mantenham competitivos no mercado. Se não existisse essa desigualdade, não existiriam hoje ações afirmativas do governo e outras agências de apoio ao empreendedor, para ajudar a combater a discriminação racial”, relata Adriana Barbosa, da Feira Preta.

Empreendimentos em prol da identidade e autonomia

A trajetória histórica da mulher negra tornou-a sinônimo de guerreira. Acostumada a gerir casa, gestar e cuidar da família, enveredar para o empreendedorismo é o fluxo e extensão da ordem natural para algumas, já que ser a mantenedora emocional e material da casa nunca foi uma novidade para maioria das pretas brasileiras. A maioria dos empreendimentos femininos surge da necessidade de afirmação e construção da identidade.

Foi assim com um das principais e mais influentes empreendedoras negras da atualidade, Zica Simões, ex-empregada doméstica e criadora da rede de cuidados com os cabelos afro Beleza Natural. “O Beleza Natural surgiu quando eu procurava fortalecer minha imagem, buscando melhorar o visual dos meus cabelos que sempre foram muito crespos e sem maleabilidade. Fui estudar para ser cabeleireira porque acreditava que, conhecendo meu fio, poderia fazer alguma coisa para melhorar minha situação – não me conformava em ter de alisar os cabelos para ficar com um aspecto razoável. Passei dez anos estudando o fio crespo e misturando e testando cremes e produtos com o intuito de me dar aquele visual sonhado: cabelos naturais, cheios de cachos, com brilho, maciez e beleza. Quando cheguei à fórmula que deu aos meus cabelos mais maleabilidade, além de ficar extremamente feliz com o resultado, percebi que poderia levar essa solução para várias pessoas da minha comunidade, todas com um problema similar ao meu. Assim surgiu o primeiro salão Beleza Natural, na Tijuca, no Rio de Janeiro, aberto em 1993”, lembra a empresária.

Após serem furtadas num arrastão, Adriana Barbosa e Deise Moysés, que trabalhavam vendendo pasteis e roupas de brechó na feira, perceberam que estava na hora de mudar o rumo da história: “Decidimos criar a nossa própria feira. Foi ai que surgiu a Feira Preta, em 2002, com a proposta de reunir no mesmo espaço comércio e cultura. Nesses últimos anos a Feira se transformou no maior encontro de cultura negra da América Latina. Une cultura e comércio de produtos afro-étnicos. Desde o seu surgimento, a Feira é realizada anualmente, com o forte objetivo de difundir costumes e tradições da cultura negra e fomentar negócios entre empreendedores da comunidade negra. Em onze edições do evento, a Feira Preta já reuniu 500 artistas, 600 expositores, mais de R$ 3,5 milhões de circulação monetária e 100 mil visitantes. Em 2009, foi criado o Instituto Feira Preta, que celebra o movimento cultural de coletivos que se dedicam à temática negra e reúne informação sobre vários artistas, em diferentes linguagens, funcionando como uma base de dados e divulgação de eventos, iniciativas, exposições, performances”, explica Adriana Barbosa, criadora da Feira Preta.

Prestes a lançar a sua primeira coleção de acessórios feitos com tecidos africanos, a atriz e empreendedora Débora Marçal já faz da sua marca Preta Rainha um negócio de sucesso com público fidelizado. “A ideia é criar um estilo que ofereça a possibilidade de outro conceito de beleza, diferente do padrão que temos há anos, onde nem todas as mulheres são privilegiadas. Crio peças que pensam o corpo, o cabelo e a vestimenta como uma manifestação da forma de cada individuo ser e se manifestar no mundo. O que busco é valorizar o que cada um traz de mais autêntico: a textura da pele, do cabelo, formato do rosto, tudo em composição com as geometrias das estamparias africanas, aumentando e fomentando a autoestima das mulheres brasileiras, em especial a mulher negra que não está dentro de nenhum padrão na mídia”, explica Marçal.

“Há mais de 20 anos lutamos pela valorização do cabelo crespo. Na época em que comecei a pesquisar, o mercado só oferecia alisamentos, henês, pastas. Nada que valorizasse verdadeiramente o cabelo crespo e cacheado. Hoje melhorou um pouco e a indústria cosmética, com a ajuda da mídia, com atrizes assumindo os cachos, está começando a dar mais valor aos cabelos crespos”, observa Zica Simões.

Embora a presença majoritária das mulheres empreendedoras (negras ou não-negras) esteja relacionada às atividades de comércio e serviços, Luiz Barreto, presidente do SEBRAE, ressalta que “empreender no setor de serviço não é negativo, não representa um demérito para o empresário. De um modo geral, as atividades do setor de serviços são dominantes nas economias fortes”.

Por outro lado, a diretora executiva do CEERT, Cida Bento pondera que “estar nos serviços mais desprestigiados e nos quais os salários são menores é o grande problema. E isto é fruto da conexão mulher, negra e pobre. Ressignificar na mídia o lugar da mulher negra como especialista, executiva, cientista pode ajudar a alterar o imaginário que só enxerga a mulher nos piores nichos. O próprio governo, que é quem mais despeja recursos nas agências de propaganda, pode definir que só contratará serviços de empresas que valorizem todos os segmentos sociais”.

Mais do que difundir produtos na mídia, a necessidade de se criar espaços que explicitem esse novo mercado pode fomentar a competitividade, o conhecimento e acesso aos produtos voltados à identidade afrobrasileira. Para Adriana Barbosa, “a mídia precisa entender o conceito da diversidade também como um valor competitivo. No Brasil existe um grande percentual de mulheres negras com poder de compra, que não se enxergam representadas em muitos produtos segmentados. Eu particularmente deixo de comprar algo que me agrida na comunicação, ou que não traduza a minha especificidade em seus rótulos. Mas também acredito que hoje é muito difícil passar despercebido. A sociedade está mais atenta aos absurdos, eu digo a sociedade porque não é uma vigilância só da comunidade negra, mas de todos”.

Outro aspecto importante dos empreendimentos geridos por “pretas” é a intimidade com o cliente. A maioria dos negócios não buscam apenas alavancar e expandir as vendas ou lojas, querem dar ao cliente um tratamento diferenciado e personalizado. “Nós atendemos 100 mil clientes por mês só para fazer o tratamento relaxante que não tem formol, e tudo isso com muita luta e força de vontade, mas, isso só não basta. É importante conhecer o seu cliente, seus problemas, o que ele deseja. Quando fundamos o primeiro salão Beleza Natural, conhecíamos muito bem os problemas que cada um de nossos clientes vive: uma batalha com o próprio cabelo, baixa autoestima, dificuldade para relacionar-se profissional e socialmente. E isso fez toda a diferença”, Zica Simões.

“É importante que essa mulher ou homem se sinta visto, cuidado e escutado. Durante muitos anos fomos invisíveis para sociedade e nos tornamos invisíveis para nós mesmos, agora podemos nos ver e saber que temos pares. Eu só passo a existir e me achar bonita ou feia quando eu encontro meus pares, se eu não os encontro, nem existo. Para nós, o que não falta é referência positiva de beleza negra, mas o que se veicula é apenas um modelo, que de tanto se repetir torna-se padrão”, destaca Débora Marçal.

A soberania dos cachos

A dez minutos do metrô Patriarca, na zona leste de São Paulo, os 40 metros da sala, que para os olhos desavisados não passa de um salão de beleza comum, guardam uma história de luta familiar e o início de uma trajetória de sucesso. Vestidas de preto e amarelo, maquiadas e com cabelos transados, Sandra Antonia (63), Shirley Lella (39) e Sheila Dourado (36) relembram a história da Makeda Cosméticos, empreendimento que desponta no mercado dos cabelos afro no Brasil, Nepal e Angola.

O empreendimento familiar deriva do trabalho de vinte anos da matriarca Sandra Antonia, que ao se separar do pai das filhas, se viu com a força necessária para lutar e reescrever a história. “A gente se acostuma com a violência, acostumamos a não sermos vistos. Nós, negros, não nos vemos. Quando me separei, fui morar no porão de uma empresa de engenharia com as minhas filhas. Fui tudo quanto é eira: costureira, faxineira, cozinheira… até que virei cabeleireira”, brinca. Em 1992, Sandra tornou-se consultora de cosméticos para uma empresa norte-americana, especializando-se em cabelos crespos.

Levada pela matriarca, Shirley Leela, após trabalhar como copista em escritório de arquitetura, ingressou no mundo dos cosméticos para cabelos afro: “A gente experimentava e sabia o que era e o que não era bom para o cabelo crespo ou cacheado. Isso nos ajudou a nos fortalecer enquanto mulheres negras”.

Seguindo o exemplo da mãe e da irmã, Sheila Dourado, aos 17 anos, também enveredava no mundo como técnica-capilar. “Também sou atriz, mas sempre trabalhei como cabeleireira atendendo nas casas das clientes. Saia da sala de ensaio, pegava a malinha e atendia até de madrugada”.

Durante doze anos as três montaram o primeiro negócio, o salão Arte Axé, no bairro do Tatuapé, onde atendiam mais de 600 clientes por mês. Ao fechar este primeiro salão, as três continuariam atendendo como cabeleireiras e consultoras. “Na nossa vida as coisas sempre foram acontecendo, tivemos muita sorte e recebemos muitos presentes ao longo da nossa história, que sempre foi de muita luta. Um dia recebi um e-mail sobre vagas na equipe de produção do Cirque Du Soleil, enviei o currículo e fui chamada. Naquele momento, sabia que alguma coisa estava para acontecer. Fui morar no apartamento de uma amiga que havia viajado e me dividia entre o trabalho no circo e os atendimentos na casa das clientes”, relembra Shirley.

Foi numa madrugada que a caçula teve um insight para a criação da Makeda Cosméticos. “Cheguei para minha mãe e irmã, falei que tinha um investidor e que criaríamos os produtos para cabelos crespos e cacheados. Elas me olharam e toparam. A Shirley havia sido mandada embora da empresa de cosméticos e tinha contato com laboratórios, não tinha erro”. O que Sheila não contou para família é que a investidora era ela. “Peguei o cachê dos três meses de trabalho no Cirque e investi na criação dos primeiros produtos. Testamos em nossos cabelos, nas amigas e no meu sobrinho, o Ryan. Aos poucos fomos chegando à fórmula que temos hoje, Coconut-terapia”, explica Sheila.

O empreendimento recebeu o nome da rainha etíope Makeda, conhecida como a Rainha de Sabá, presente na cosmogonia dos povos hebreus, islâmicos e etíope. Ela é lembrada por sua beleza e elegância. “Quando vi a sua imagem e soberania, tive certeza de que estávamos no caminho certo e que a Makeda era um reinício para nossa história”, afirma Sheila. Nas palavras da matriarca, “eu sempre soube que teríamos algo nosso e que ajudaríamos a comunidade negra a se enxergar”, relata Sandra.

Com menos de dois anos no mercado, a Makeda Cosméticos atende mais de trezentas clientes, aos poucos ganha o território brasileiro e o mundo. “Nossas clientes nos procuram, indicam pessoas de outros estados e países, temos clientes que levam os nossos produtos para Angola, Nepal, Salvador, Rio de Janeiro…”.

Pensando na expansão da marca, as três se preparam para dar o curso de formação e especialização em cabelo afro. “Falta conhecimento e intimidade com o nosso cabelo. O nosso intuito é restabelecer essa conexão com o cabelo, com a nossa história. Nos fizeram acreditar que éramos feias com falas e produtos que não são próprios, que agridem ainda mais o nosso cabelo, o nosso corpo. Hoje podemos construir uma nova história, com produtos feitos e pensados por nós, mulheres negras”, finaliza Sheila.

O estudo como empreendimento

Ela é doutora e ativista do movimento negro e jovem. Aos 33 anos, Marcilene Garcia de Souza, a Lena, recebeu o título de doutora pela UFPR com o apoio da Fundação Ford, tornando-se referência entre os jovens negros que ingressam na universidade paranaense

Marcilene Garcia de Souza, Lena para os amigos, hoje tem 37 anos. Em 2010, foi a primeira mulher negra a receber o título de doutora pela Universidade Federal do Paraná. Mudando o curso e o estigma de uma menina nascida em família pobre, no interior do Paraná, Lena viu nos estudos a oportunidade de mudar o caminho que para muitos negros é destino fadado, pelo menos nas estatísticas. “Minha mãe sempre disse: ‘quer vencer na vida? Estude’. Então eu estudei, não faltava na escola, caminhava 11 km numa estrada de terra escura para voltar para casa. Estudar foi o meu empreendimento”, diz.

Filha caçula de uma família de nove irmãos, Lena foi a primeira a fazer universidade e obter título acadêmico. “Não me vejo privilegiada. Numa sociedade racista e cheia de obstáculos sociais, consegui burlá-los. Eu me sinto muito comprometida em fazer mais e melhor para população. O que me faz lutar é a certeza do meu compromisso com os nossos antepassados negros que foram assassinados, humilhados e torturados neste país por mais de 350 anos. São as lembranças deste passado que sempre me moveram para o futuro”.

A educação sempre foi um norte e o solo para que as raízes de Lena amadurecessem. Nos diálogos de amor, como costuma chamar os momentos sentados em círculo na companhia do pai, recebia os primeiros princípios de respeito e solidariedade. “Meu pai era um contador de histórias. Ele foi autodidata, aprendeu a ler e a escrever sozinho, deu aula e alfabetizou outras pessoas. Sempre sentávamos em círculo para ouvir suas histórias, que nos ajudaram a compreender o ser humano. Apesar de não ter luz e livros em casa, eu e meus irmãos ousávamos, lendo bula de remédio, pedaços de revista e a Bíblia. Escrevíamos no chão e na areia da praia em Itapoá (SC). Contávamos o número de plantas e frutas no quintal, ouvíamos histórias e músicas antigas. Percebi, posteriormente, que aquela forma de educar continha signos da história dos nossos antepassados negros, sobretudo quando se refere a uma educação voltada para olhar o todo, respeitando os mais velhos, os animais e as plantas”.

Quando questionada sobre o título de ser a primeira doutora negra da faculdade de sociologia da UFPR, Lena deixa de lado a emoção e a memória para ser enfática sobre compromisso e responsabilidade social. “O mérito da titulação é importante para a população negra, possibilita a ocupação de espaço e garante a diversidade do olhar numa educação fundamentada em conceitos eurocêntricos. Para mim, o título acadêmico é sinônimo de responsabilidade e compromisso com a multiplicação do saber e do olhar para diversidade étnico-cultural afrodescendente”.

A doutora, que no passado vendeu doces caseiros e mandioca para custear o transporte e garantir presença na sala de aula, hoje se pauta no compromisso e na responsabilidade de ser referência perante a comunidade afro e na militância dentro do movimento negro paranaense. Lena criou o IPAD (Instituto de Pesquisa da Afrodescendência), que desenvolve projetos de ações que fomentam a educação do negro no meio universitário. “Muitas vezes, a gente consegue entrar na universidade, mas não consegue permanecer por falta de dinheiro. Já hospedei orientandos na minha casa para incentivá-los a permanecer no curso. O desafio é criar ações afirmativas que vão além da ação afirmativa”, diz.

Há um ano em São Paulo, Lena leciona no curso de direito da Faculdade Zumbi dos Palmares e é coordenadora geral da coordenação de ações afirmativas da Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial de São Paulo, a SMPIR. “Acabamos de ter sancionada a lei de cotas para negros em concursos públicos e cargos comissionados no município, isso é um feito para a comunidade afropaulistana. Aos poucos vamos construindo uma nova história de oportunidades. Nós, negros, queremos e precisamos ser protagonistas de nossas histórias, de nossas esperanças”.

Quando questionada sobre as áfricas que lhe habitam, Lena fica em silêncio e surpresa com a pergunta. Mas sua resposta não tarda: “A África da responsabilidade com os meus ancestrais. Quando li “Negras Raízes “(Alex Haley) lembro-me de não conseguir sair do capítulo que descrevia as memórias do navio negreiro. Eu chorava e paralisei diante daquela narrativa. Hoje, a África que me habita é aquela que honra os ancestrais e sabe que não está sozinha”, conclui.

Fonte: Revista Raça Brasil

Compartilhe!

Um comentário, add yours.

Ceiça Axé

Olinda !A primeira capital da Cultura afroindigena,precisa dessas parcerias para mostrar a verdadeira força e acara do nosso povo com seus saberes e sabores,para fazer desta Nação uma verdadeira Pátria Mãe gentil,ai sim verais que os filho@s jamais fugiram a luta e não temerão a própria MORTE!

Deixe o seu comentário, queremos ouvir você