Entrevista: Teresa, a Batista

Em 1974, ao sair da prisão, ela recebeu do pai um relógio: sua hora tinha chegado. Seria difícil – não tinha bons antecedentes. Mas havia uma causa à vista

“Por que a Virgem de Czesto­cho­wa é negra?”, pergunta a polaquíssima Teresa Urban, 60 e poucos anos, antes de se render ao extenso questionário desta entrevista. Dis­trair-se é preciso. Conver­sas com a imprensa são para ela sinônimos de uma longa jornada noite adentro. Sabe que vai ter de passar pelo sótão do recém-demolido casarão dos Urban – na Bri­gadeiro Franco –; pelos porões da di­­ta­dura militar; por florestas e nascentes em perigo e, sem saída, pela defesa aguerrida do Código Flo­restal.

É lenha. Dá mesmo vontade de limitar ao trivial – a nova casa onde mora no Jardim das Amé­ricas, eslavamente pintada de co­­res fortes. A saúde das cachorras Pequena, Me­­ni­ni­nha e Didica. Mas não há meio. Quan­do Teresa acende a terceira cigarrilha Talvis – são cerca de 20 por dia – chega a hora de remoer um capítulo recente da história brasileira.

Nele, a filha de Janina e de Esta­­nis­lau, o dono da Móveis Urban, passou de Teresa a Batista – seu nome de alcova na Or­­ganização Revolucionária Marxista Política Operária, a Polop, a mesma a que foi vinculada a presidente Dilma Rousseff. A adesão à esquerda lhe rendeu três prisões e a perda do rumo. Ao se encontrar, a militante comunista da mocidade se transformou numa senhora das causas do meio ambiente, com passagens por Veja e Estadão. O sonho não aca­bou. Mas saiu abalado. Ela fuma e tenta explicar por quê.

Teresa Urban foi torturada?

Sim. No quartel da Praça Rui Bar­bosa – que não existe mais – quan­do fui interrogada pelo delegado [Sérgio Fernando Paranhos] Fleury. A tortura tem um impacto que não é físico: é a impotência absoluta, a prepotência absoluta. E isso fica.

Por que Teresa?

Nunca perguntei. Deve ser por causa da santa. Em casa, minha mãe me chamava de Teresinha ou Dinca, meu apelido polaco. Só quando me matriculei no Divina Providência descobri que meu nome era Teresa.

E seu nome de guerra?

Batista, um nome que não dava para identificar se era de homem ou de mulher. Provavelmente me chamaram assim por causa da Teresa Batista, do Jorge Amado.

Você se parece com quem?

Minha mãe era filha de poloneses, uma mulher muito independente. Meu pai era polonês, mas nunca quis voltar para a Polônia. Minha mãe ia pra Polônia todo ano. Era anticomunista ferrenha. Eu me identificava muito com o meu pai. Ele era um cidadão do mundo. Ele lia jornal. Era mais tolerante.

Quando tudo começou?

Ah, sei lá… Eu gostava muito de ler, tinha paixão por jornal e era meio rebelde, desde pequena. Estudava em colégio de freiras. No São José, tive problemas: eu perguntava muito. Quando estava terminando o Normal, lembro bem, havia uns cartazes espalhados pela escola com umas imagens do pobre do Cristo com uma coroa feita de foice, martelo, foice, martelo… Uma neurose. A gente rezava todo dia para o comunismo não vir para o Brasil.

Foi muito rápida sua passagem de Teresinha a Teresa…

Nada do que a minha mãe queria que eu fosse eu era – nem arrumadinha, nem bonitinha. Queria usar calça comprida. Era moleque. Lembro de coisas engraçadas. No período em que ia ter o baile das debutantes do Clube Juventus, o representante do evento veio me convidar. Mas eu estava lendo Dostoievski. Olhei pro cara e disse: “Não sou disso.” Uma vez apareci numa foto de primeira página de um diário, no alto da escadaria da Praça Santos Andrade. Minha mãe quase teve um chilique.

Quantas vezes você foi presa?

A primeira vez em 3 de outubro de 1966, dia da eleição para o colégio eleitoral do Costa da Silva. Acha­ram que haveria uma manifestação de estudantes. Os policiais cercaram todo o quarteirão da minha casa [na frente da Praça 29 de Março] e levaram minha mãe achando que era eu. Sempre disse que foi um elogio, mas ela não aceitava. Corri atrás e mostrei o engano. Foi um caos, porque eu era menor de idade. Durou só um dia, mas rendeu uma longa crise familiar. Me prenderam de novo em junho de 1970. Fiquei um mês. Um mês bem pesado. Meu marido tentou suicídio na cadeia, ficou muito mal, nunca se recuperou. Eles conseguiram destruí-lo integralmente. Fui para o Chile. Na volta, prisão em Piraquara. Durou um mês. Fiz greve de fome, fiquei inconsciente e me levaram para o convento das Mercês. Quando acordei, me vi num quarto bem branco, com uma freira toda de branco ao meu lado. Pensei: eu morri, vim pro céu [risos]. Fiquei ali quase dois anos.

Lembra o que aconteceu no dia em que saiu da prisão?

Sim. Meu pai foi me buscar. No caminho, ele parou numa relojoa­ria e me comprou um relógio. Foi o jeito de me dizer que estava na hora de eu mudar de vida. Ele se chamava Estanislau, claro. E era uma figura muito bonitinha.

O que mais queria naquele dia?

Ficar com minhas crianças. Fui presa [no período mais longo] quando meu filho tinha 3 meses. Minha outra filha era pequena. Era atordoante, porque no fundo todas as restrições continuavam. O Comando de Caça aos Comu­nistas, o CCC, mandava cartas a todo momento, ameaçando.

As presas políticas brasileiras resistem em falar da tortura…

O Brasil não falou de tortura ainda. A tortura ficou por baixo do pano, mal colocada, mal conhecida. A consequência é que continua existindo em qualquer delegacia. Isso me incomoda profundamente. Nós deixamos passar 40 anos. Não tem comissão da verdade que vá resolver isso agora.

Você endureceu…

A repressão foi fulminante. Quan­do saí da cadeia não havia mais nada: as organizações de esquerda tinham acabado, meus companheiros estavam na cadeia, mortos, desaparecidos ou no exílio. Fui trabalhar com os bóias frias. Eu olhava com desconfiança a estruturação partidária, mesmo a do PT. Resolvi não me envolver mais. Continuo sendo um ser político que ainda não achou seu lugar. Eu não achei meu lugar.

Ter a ex-guerrilheira Dilma Rous­seff no poder significa algo para Teresa?

Honestamente, não. Não gosto da política que o PT faz. O Lula perdeu uma grande oportunidade. Acho muito triste que essa ascensão de segmentos que estavam na linha de miséria tenha se dado via mercado e não via cidadania. Não sinto que sociedade brasileira abraçou esses novos brasileiros. Eles são números: passaram a comprar nas Casas Bahia. Mas desejo boa sorte para a Dilma.

Quando você despertou para o jornalismo de meio ambiente?

Quando saí da cadeia, as pessoas atravessavam a rua para não me encontrar. Não conseguia emprego como jornalista. Nem registro profissional, pois não tinha atestado de bons antecedentes. Tive que recorrer à Justiça. Mas riscavam o “bons” e deixavam só “antecedentes”. Entendi que precisava procurar algo que me aproximasse das pessoas. Queria uma causa comum. E imaginei que ter água de boa qualidade para beber e ar para respirar era algo que todos poderiam compartilhar.

O “mundo melhor” chegou?

Acho que o mundo ficou pior, do ponto de vista de que hoje não temos uma contradição explícita entre duas opções da sociedade. Ao mesmo tempo, temos avanços nos cuidados com a saúde, redução da mortalidade infantil, chance maior de ir à escola. Mas o mundo ficou mais sem graça, mais pasteurizado. Além disso, é muito mais difícil ser jovem.

Apesar dos ecoberrantes?

Os meninos estão muito pressionados por uma sociedade que parece mais tolerante, mas que cobra o sucesso, resultados, dar certo. Querem mais coisas, mas querem menos do mundo. No Ecoberrantes [grupo de estudantes que começaram a se mobilizar para defender o Código Florestal] eu tenho convivido bastante com os jovens. Minha experiência de vida e a vontade que eles têm de compreender o que acontece na sociedade deu um resultado bacana, afetivo, caloroso. Mas no conjunto, acho que venceu a padronização.

Acredita que o substitutivo ao Código Florestal será aprovado pelo Senado?

Por trás desse debate está a disponibilidade de terras no Brasil para investidores estrangeiros. E a colocação do agronegócio brasileiro no mercado internacional. A curto prazo, o que interessa é ter terras para negociar, sem restrições para usá-las. A desregulamentação representa o Estado mínimo, a ausência de regras para o setor econômico. O código é uma peça notável do ponto de vista das ciências da natureza e, ao mesmo tempo, um manual de boas práticas na agricultura. O que vai acontecer, não sei.

O ponto em que estamos…

Há uma disposição em ouvir sobre a escassez de recursos naturais, mas não há uma disposição em agir. As pessoas ainda delegam para os outros o dever de proteger. Tenho medo do caminho que a gente está começando a trilhar – o do pagamento pelos serviços am­­bientais. O di­reito ao ar menos poluído, aliás, já é de quem pode comprar uma casa no meio de um bosque no Eco­ville.

Você é fumante. Rola uma patrulha em cima da ambientalista…

Eu respeito a regra do jogo, mas me chateia não poder fumar em vários ambientes, ter de ficar na rua, meio pária. Me incomoda essa cruzada santa. Não tenho um olhar de “vida imortal”, como as pessoas hoje querem ter. Fiquei 15 anos sem fumar. Recomecei quando fui para Cuba, porque era irresistível… Adoro cigarrilhas.

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